domingo, 18 de outubro de 2015

Carne: comer ou não, eis a questão

Comer carne ou não comer carne, eis a questão. Hoje em dia, numa sociedade que valoriza cada vez mais a imagem corporal, e que elabora diversas dietas hiperproteicas no sentido de obter/manter o "corpo perfeito", onde muito do fornecimento proteico se deve ao consumo de carne, derivados de carne, peixe e ovos, essa questão quase que parece absurda. Contudo, a sociedade atual é também aquela que apresenta, a cada ano que passa, um maior número de pessoas que prefere adotar um regime isento de carne e derivados da carne, ou mesmo vegetariano. Afinal, o que motiva essas pessoas? Será que consumir carne, especialmente nas quantidades defendidas atualmente, não terá realmente algum impacto negativo? Decidi novamente pesquisar, abordar os vários prós e contras desta questão e elaborar a minha conclusão pessoal.



Antes de mais, é necessário esclarecer que aqui o termo "carne" refere-se apenas à carne de aves e mamíferos. Apesar deste termo ser mais abrangente nas definições apresentadas pelo Codex Alimentarius e pela European Comission, com o passar do tempo começou a fazer-se nas várias línguas a divisão entre a carne de aves e mamíferos, e a carne do pescado e restantes animais, associando o termo "carne" apenas aos primeiros, e utilizando outros termos para se referir aos segundos - pescado, frutos do mar, entre outros. Além disso, alguns dos problemas associados ao consumo de carne e à sua produção não se apresentam relativamente ao pescado e outros produtos de origem animal, pelo que tratar apenas da "carne" deste grupo de animais isoladamente faz mais sentido do que tratar de tudo no seu conjunto.


Nutricionalmente, a carne é uma ótima fonte de proteínas, minerais e vitaminas. Apresenta todos os aminoácidos essenciais ao bom funcionamento e desenvolvimento do nosso organismo, e são eficazmente absorvidos (absorção superior a 50%). As carnes de aves contêm ainda taurina, um aminoácido com funções anti-inflamatórias e antioxidantes comprovadas, ajudando a prevenir o aparecimento de doenças. Devido ao importante contributo proteico, é importante nas fases de crescimento e desenvolvimento, bem como para doentes com traumas, queimaduras e infeções, cujas necessidades proteicas se encontram aumentadas. Fornece ferro, zinco, selénio e fósforo, vitamina B12 e outras vitaminas do complexo B; alguns destes, como é o caso do ferro, são mais facilmente absorvidos neste alimento do que em alimentos de origem vegetal. Apesar de apresentar grande quantidade de gordura saturada e colesterol na sua composição, é possível reduzir a quantidade que ingerimos, preferindo a carne de aves, os cortes de carne mais magros (o peito nas aves, o lombo no porco e na vaca), formas de confeccionar sem gordura adicionada (grelhados, cozidos, assados sem molhos) e retirando toda a gordura visível na carne.

De um ponto de vista socio-cultural, a compra de carne é associada a poder económico em algumas culturas, e a sua partilha e consumo são vistos como maneira de estabelecer e fortalecer as interações sociais. À excepção do budismo, certas formas de hinduísmo e outras religiões menos conhecidas, que excluem a carne ou variantes da mesma dos hábitos alimentares dos seus praticantes, a carne é vista como parte integrante dos pratos tradicionais das várias culturas, e as pessoas encontram-se já habituadas ao seu consumo, ao seu sabor, à saciedade que providencia. Analisando a questão da perspectiva económica, o aumento da produção de carne e a maximização da sua utilização através dos seus derivados, são as estratégias defendidas pela FAO como resposta à fome e malnutrição dos países mais pobres. Apesar de representar maior custos que a produção de cereais, a produção de carne não é dependente de alterações climáticas, principalmente devido ao desenvolvimento de novos sistemas de alimentação dos animais, menos dependentes de alimentos de origem vegetal.

Existe ainda a perspectiva histórica, e que nos conduz para a questão "Porque é que consumimos carne afinal?". O consumo de carne remota os tempos mais primitivos, em que a nossa espécie, guiada pela necessidade de encontrar comida para si e para a sua tribo, e seguindo a cadeia alimentar existente entre outras espécies, deixou de comer apenas sementes, vegetais e frutos, e passou a incluir carne na alimentação. A descoberta do fogo contribuiu também para esse consumo dada a capacidade de tornar a carne mais tenra e saborosa. O consumo de carne manteve-se com o passar dos tempos, principalmente porque os grupos que consumiam carne resistiram melhor às condições ambientais e climáticas adversas que os grupos que não a consumiam, pois ao só consumirem alimentos vegetais estavam mais dependentes do clima que os restantes.

Algumas correntes a favor do vegetarianismo defendem que a nossa espécie não está adaptada fisiologicamente ao consumo de carne, pois tais adaptações levam milhões de anos a ocorrer, contudo sabe-se hoje em dia que apresentamos algumas diferenças adaptativas relativamente aos nossos antepassados "vegetarianos". O nosso cólon é menor, dado o menor consumo de plantas e do seu alto teor em fibra, e o intestino delgado maior, devido à necessidade de adaptação a uma dieta mais variada, nutricionalmente mais densa e com maior volume, com maior necessidade de digestão neste órgão. A nível dentário, apresentamos também molares mais pequenos, mandíbulas mais fortes e maiores cristas de corte, devido à menor necessidade de moer cereais e folhas, e maior necessidade de cortar e mastigar carne. Alguns dados antropológicos sugerem também que o consumo de carne contribuiu para a nossa postura erecta - mais eficiente na locomoção e transporte de carga - e para o desenvolvimento da nossa inteligência e raciocínio - não só pelos benefícios nutricionais, mas também pela necessidade de desenvolver estratégias de caça, comunicar, e partilhar estrategicamente a carne. Assim, é possível que afirmar que o consumo de carne, além de natural, teve um contributo importante na nossa evolução. Há ainda dados a confirmar que, ao longo dos séculos mais recentes da nossa evolução, o consumo de carne nem sempre foi constante devido a diversos factores económicos, sociais e culturais, sendo que os períodos com menor consumo de carne e maior consumo de cereais foram associados a maior incidência de problemas dentários, problemas cardiovasculares, obesidade e problemas de desenvolvimento.

Então afinal, qual é o problema?

Bem, já referi maneiras de reduzir a quantidade de gordura presente na carne; contudo, mesmo reduzindo, a quantidade presente na carne continua a ser relativamente elevada quando comparada com outros alimentos ou mesmo com as nossas necessidades. E essa gordura, sendo de origem animal, é essencialmente gordura saturada e colesterol, que aumentam o risco de doenças cardiovasculares quando consumidos em excesso. E a verdade é que o consumo de carne hoje em dia consegue realmente atingir valores excessivos em grande parte da população, especialmente ao nível dos países desenvolvidos, do Brasil e da China. O mesmo se passa com os minerais presentes na carne: precisamos deles mas não quando o consumo se torna excessivo. O ferro, quando ingerido em excesso, provoca danos na mucosa intestinal, e recentemente vários estudos têm associado o excesso de ferro com risco de doenças cardiovasculares, cancro e doenças neurodegenerativas. Além disso, no processo de confecção, parte do seu teor vitamínico é perdido, por instabilidade térmica e solubilidade em água (métodos que envolvam contacto prolongado do alimento com a água levam a passagem das vitaminas para a água). 
A associação do consumo excessivo de carne e derivados da carne com o aumento de risco de cancro não se deve só à excessiva ingestão de ferro, mas também ao excesso de gordura consumida e ainda à presença de certos compostos, a nível dos derivados da carne, que são usados nos métodos de processamento ou resultantes deles - como é o caso dos nitratos e nitritos, e dos PAH - que são comprovadamente carcinogénicos.

Uma recente e crescente preocupação por parte dos consumidores de carne é a presença de hormonas e antibióticos na carne. As hormonas são administradas aos animais de modo a promover um crescimento mais rápido com menor quantidade de comida fornecida, maior ganho de massa muscular e diminuição da massa gorda. Contudo, quando a carne chega ao consumidor, apresenta ainda hormonas - ou resíduos de hormonas - cujo potencial no aumento do risco de cancro e alteração da nossa regulação hormonal foram já demonstrados. Normalmente a quantidade presente na carne é pequena demais para causar danos, contudo é necessário um controlo rigoroso de modo a evitar o descontrolo desta situação, como em certos episódios já registados. A FDA desenvolveu métodos para detectar a presença destas hormonas na carne; contudo, tal como na situação do leite, nem todas as hormonas são facilmente rastreáveis, pelo que continuam em desenvolvimento métodos para uma detecção mais eficaz. Já que no que toca aos antibióticos, a situação repete-se: o uso preventivo de antibióticos nos animais para prevenir as infeções derivadas de condições decadentes em que vivem (em vez da alteração das condições em si) leva ao desenvolvimento de estirpes patogénicas mais resistentes aos antibióticos. Nós ingerimos os antibióticos pois estes continuam presentes na carne que consumimos; depois, quando adoecemos, geram-se situações difíceis de controlar, dado que o medicamento que nos auxiliava não faz mais efeito. Além disso, o consumo frequente (ainda que involuntário) destes antibióticos enfraquece o sistema imunitário, levando ao maior aparecimento de infeções.Será que comer carne continua a ser natural num mundo em que a nossa comida é produzida de uma forma cada vez menos natural?

Outra questão negativa acerca da carne é o facto de constituir ela própria um veículo de agentes patogénicos. A Taenia é um parasita presente na carne crua, mas que através de carne mal cozinhada ou contaminada, facilmente chega até nós. Uma das variantes da Escherichia Coli, presente no sistema digestivo dos ruminantes, evoluiu devido à alteração dos sistemas de alimentação animal, e pode estar presente na carne crua por contaminação no matadouro; quando consumida, pode ser letal, provocando destruição dos glóbulos vermelhos e falência renal. Os casos da "gripe das aves" e da "doença das vacas loucas" são dois bons exemplos de doenças transmitidas à espécie humana pelo consumo de carne, causando muitas mortes desnecessárias.

Por fim, aborda-se o impacto ambiental negativo da produção de carne. Quanto maior o consumo de carne pela população, maior a produção e o número de animais envolvidos na mesma, com piores condições para os próprios animais. A realidade de muitas destas produções são animais confinados a espaços pequenos, com condições deploráveis de higiene e sem espaço para se moverem, o que desequilibra o crescimento rápido provocado pelas hormonas e leva à existência de fracturas e a stress nos animais, incluindo comportamentos agressivos no estabelecimento em que permanecem. Os documentários Food,Inc, Meat the Truth e Earthlings retratam bem esta realidade. O aumento da produção leva também à destruição de vários hectares florestais para desenvolver campos de soja e milho para alimentar um número crescente de animais; assim se destroem ecossistemas e diminui a biodiversidade. Mais: os ruminantes (especificamente) são os principais produtores de gases responsáveis pelo efeito de estufa, devido ao metano formado na fermentação dos alimentos; juntando isto a outros procedimentos da indústria da carne responsáveis pela formação de gases poluentes, esta indústria é responsável por 18% das emissões de gases responsáveis pelo efeito de estufa, ultrapassando os transportes (13%). Estamos a destruir e a degradar o nosso planeta, e a provocar uma ausência de qualidade de vida nos animais envolvidos neste processo, e que indiretamente acaba por nos afetar a nós por sermos o consumidor final.



Qual então a decisão a tomar?


Novamente, prefiro não optar por extremos. Retirar totalmente a carne e os seus derivados da alimentação constitui uma das soluções possíveis, mas para as pessoas que vêm o hábito de comer carne tão enraízado nas suas vidas, aqui vai a boa notícia: basta reduzir a quantidade de carne que consumimos para se verificar alterações positivas a todos os níveis descritos, e ainda manter os benefícios que o consumo de carne traz. Reduzir as porções de carne e principalmente a frequência do seu consumo, alternando com refeições de peixe, de ovos e vegetarianas, traz benefícios à saúde, reduz riscos e tem um impacto positivo comprovado no ambiente.
É possível ter uma alimentação sem carne e satisfazer todas as necessidades nutricionais; contudo, é mais complexo, requer mais atenção e cuidado e maior variedade na alimentação, uma vez que as fontes de proteína vegetal não apresentam todos os aminoácidos essenciais - sendo necessário combinar sempre fontes vegetais com diferentes aminoácidos (complementaridade proteica) - e não são tão eficazmente absorvidos. A remoção da carne da alimentação deve ser acompanhada por um nutricionista, em qualquer faixa etária e por qualquer razão, de modo a prevenir deficiências nutricionais.

Sei que foi novamente um texto longo, mas tal como o tema anterior, o consumo de carne é um tema polémico e com várias perspectivas a considerar para uma decisão informada e ponderada. Espero que estejam mais esclarecidos das vantagens e riscos associados ao consumo de carne e tomem a vossa decisão de modo mais consciente :)

Beijinhos,

Joana Ferreira.

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